A LEI COMPLEMENTAR 214/2025 EXPLICITA NOVO REGIME JURÍDICO PARA A IMPORTAÇÃO POR CONTA E ORDEM DE TERCEIRO


Neste momento, todos estão cientes que a reforma tributária é uma realidade. A longa espera terminou e agora cabe se preparar para as mudanças que farão parte do nosso dia a dia a partir de 2026.

O que talvez muitos não tenham percebido é que algumas mudanças extrapolam os tributos sobre consumo. A Lei Complementar 214/2025 introduziu mudanças no sistema de direito positivo que exigem nova interpretação e nova regulação para algumas relações comerciais. Aqui o foco será na importação por conta e ordem de terceiro.

Para aqueles que não estão familiarizados com essa modalidade de importação, ela é aquela em que o adquirente contrata uma empresa, a trading importadora, para promover o despacho aduaneiro de importação em seu nome, na qualidade de mandatária. Logo, a compra internacional é realizada pelo adquirente, enquanto a trading importadora apenas presta serviço de nacionalização.

Essa modalidade de importação estava regulamentada apenas pela Medida Provisória 2.158-35/2001, Lei 10.637/2002, Lei 11.281/2006 e Instrução Normativa RFB 1.861/2018 e pela interpretação concedida pela jurisprudência a essas normas.

Ocorre que o parágrafo único do artigo 72 da Lei Complementar 214/2025 apresenta regra de extrema relevância que, na nossa interpretação, transborda da relação com o IBS-CBS e representa verdadeira norma geral sobre contribuintes, na forma do artigo 146, III, ‘a’, da Constituição Federal.

Propomos, portanto, o exame histórico do direito positivo relacionado a essa operação e como a Lei Complementar 214/2025, em harmonia com o Código Tributário Nacional, transformou a “importação por conta e ordem de terceiro” em “importação própria do adquirente”, exigindo urgente regulamentação para a nova roupagem dada a essa modalidade de importação.

 

- O ARCABOUÇO REGULATÓRIO DA IMPORTAÇÃO POR CONTA E ORDEM DE TERCEIRO

No ano de 2001 o Poder Executivo editou a Medida Provisória 2.158-35/2001 que, entre inúmeras regras, inseriu no sistema de direito positivo as regras básicas da importação por conta e ordem de terceiro em seus artigos 77 a 81.

Pequeno parêntese histórico: essa medida permanece vigente, sem nunca ter sido examinada pelo Congresso Nacional, dado o comando do artigo 2º da Emenda Constitucional 32/2001 que autorizou que “as medidas provisórias editadas em data anterior à da publicação desta emenda continuam em vigor até que medida provisória ulterior as revogue explicitamente ou até deliberação definitiva do Congresso Nacional.”.

Em relação à importação por conta e ordem de terceiro, a exposição de motivos da medida provisória revela que a regra proposta buscava:

[...] restringir as irregularidades praticadas nas operações de importação efetuadas pelo adquirente de mercadorias estrangeiras, por sua conta e ordem, por intermédio de pessoa jurídica importadora. Nesse sentido, propõe-se que o adquirente seja considerado responsável solidário em relação aos tributos incidentes na importação e respectivas penalidades equiparado a estabelecimento industrial, em relação ao Imposto sobre Produtos Industrializados, além de se submeter às contribuições para o PIS/Pasep e à Cofins, inclusive nas hipóteses de incidência monofásica dessas contribuições, nos casos em que a legislação atribua tal condição ao importador.

O art. 80 atribui competência à Secretaria da Receita Federal para estabelecer requisitos e condições para a atuação de pessoa jurídica importadora, bem assim exigir garantias para os casos de operações de importação que não guardem compatibilidade com a capacidade patrimonial do importador.[1]

 

No ano de 2002 foi dado seguimento ao arcabouço regulatório, com a edição da Medida Provisória 66/2002, convertida na Lei 10.637/2002, que passou a reconhecer que “a operação de comércio exterior realizada mediante utilização de recursos de terceiro presume-se por conta e ordem deste”. A exposição de motivos justificou que a introdução dessa regra “pretende instituir presunção legal que caracterize operações por conta e ordem de terceiros, com o objetivo de criar instrumento mais eficaz para o combate efetivo de fraudes fiscais praticadas em operações de comércio exterior.”

Ao fim de 2002 a Receita Federal estabeleceu as regras finais dessa modalidade de importação, com a Instrução Normativa SRF nº 225, de 18 de outubro de 2002. Entre as regras estabelecidas está a de que “o conhecimento de carga correspondente deverá estar consignado ou endossado ao importador”, enquanto “a fatura comercial deverá identificar o adquirente da mercadoria, refletindo a transação efetivamente realizada com o vendedor ou transmitente das mercadorias”. A mesma regra está estabelecida hoje na Portaria COANA nº 6 de 25 de janeiro de 2019.

Essa regra ainda hoje é responsável pela incompreensão da importação por conta e ordem de terceiro, impondo à trading importadora ônus próprio do adquirente, a exemplo de cobrança de armazenagem e demurrage, enquanto inviabiliza inúmeras regras tributárias que atenderiam o adquirente, dado não ser reconhecido como “importador-contribuinte”, apesar de ser o responsável pela aquisição da mercadoria no exterior e, por isso, estar presente na fatura comercial. Isso será mais bem abordado no tópico a seguir.

Ainda no campo do direito positivo, para finalizarmos essa análise inicial, em 2006 a Lei 11.281/2006 estabeleceu a regulamentação da importação por encomenda, destacando a diferença dessa modalidade de importação com a importação por conta e ordem de terceiro.

Hoje as regras sobre a importação por conta e ordem estão compiladas na Instrução Normativa RFB nº 1861, de 27 de dezembro de 2018.

 

- O DESCOMPASSO ENTRE A REALIDADE MATERIAL E O DIREITO POSITIVO

Conforme antecipado, o arcabouço normativo da importação por conta e ordem de terceiro não atende a melhor técnica, pois ignora a relação material gerando inúmeras distorções.

A jurisprudência e a própria Receita Federal entendem que nessa modalidade de importação o adquirente é o “importador de fato”. Em verdade, se examinarmos o Código Tributário Nacional, o adquirente deve ser reconhecido como “importador de direito” e, portanto, o contribuinte.

O artigo 146, III, ‘a’, da Constituição Federal concede à lei complementar a competência constitucional para definir os contribuintes dos impostos discriminados na Carta Magna:

Art. 146. Cabe à lei complementar:

[...]

III - estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre:

a) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos

discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de

cálculo e contribuintes.

 

Atendendo ao comando constitucional, o artigo 121 do Código Tributário Nacional dispõe sobre a sujeição passiva da obrigação tributária, definindo como norma geral que o critério pessoal do consequente da regra-matriz de incidência tributária se dá na figura do contribuinte e na figura do responsável tributário:

CAPÍTULO IV

Sujeito Passivo

Seção I

Disposições Gerais

Art. 121. Sujeito passivo da obrigação principal é a pessoa obrigada ao pagamento de tributo ou penalidade pecuniária.

Parágrafo único. O sujeito passivo da obrigação principal diz-se:

I - contribuinte, quando tenha relação pessoal e direta com a situação que constitua o respectivo fato gerador;

II - responsável, quando, sem revestir a condição de contribuinte, sua obrigação decorra de disposição expressa de lei.

 

Examinando o artigo 77 da Medida Provisória 2158-35/2001, observamos que a norma define a trading como “importadora” e o adquirente como “responsável solidário”:

Art. 77.  O parágrafo único do art. 32 do Decreto-Lei nº 37, de 18 de novembro de 1966, passa a vigorar com a seguinte redação:

"Art. 32.  ...................................................

.................................................................

Parágrafo único.  É responsável solidário:

I - o adquirente ou cessionário de mercadoria beneficiada com isenção ou redução do imposto;

II - o representante, no País, do transportador estrangeiro;

III - o adquirente de mercadoria de procedência estrangeira, no caso de importação realizada por sua conta e ordem, por intermédio de pessoa jurídica importadora." (NR)

 

Ocorre que, em verdade, na importação por conta e ordem de terceiro quem possui relação pessoal e direta com a mercadoria importada é o terceiro adquirente. A trading importadora, por sua vez, atua meramente como mandatária.

Ou seja, a trading importadora possui, se muito, apenas interesse comum na situação que constitui fato gerador dos tributos incidentes na importação, tal como aponta o artigo 124 do Código Tributário Nacional ao qualificar o coobrigado solidário:

Art. 124. São solidariamente obrigadas:

I - as pessoas que tenham interêsse comum na situação que constitua o fato gerador da obrigação principal;

II - as pessoas expressamente designadas por lei.

Parágrafo único. A solidariedade referida neste artigo não comporta benefício de ordem.

 

Percebe-se facilmente que a Medida Provisória 2.158-35/2001 e as normas citadas violam o Código Tributário Nacional, pois dispõem da sujeição passiva na importação por conta e ordem de terceiro de maneira diversa do que impõe o Código Tributário Nacional, delegatário do artigo 146, III, ‘a’, da Carta Magna, partindo das convenções particulares firmadas no contrato de serviço de conta e ordem, em violação ao artigo 123 do Código Tributário Nacional:

Art. 123. Salvo disposições de lei em contrário, as convenções particulares, relativas à responsabilidade pelo pagamento de tributos, não podem ser opostas

à Fazenda Pública, para modificar a definição legal do sujeito passivo das obrigações tributárias correspondentes.

 

A correta análise do tratamento jurídico da importação por conta e ordem de terceiro deve partir da relação material. Sobre esse ponto, o importador-contribuinte é o adquirente, pois é quem realiza a compra internacional e faz vir a mercadoria do exterior. A trading importadora não passa de uma mandatária do adquirente nessa operação, prestando serviço de despacho aduaneiro.

Para fins tributários, o intérprete deve observar a verdade material, conforme orienta o artigo 118 do Código Tributário Nacional:

Art. 118. A definição legal do fato gerador é interpretada abstraindo-se:

I - da validade jurídica dos atos efetivamente praticados pelos contribuintes, responsáveis, ou terceiros, bem como da natureza do seu objeto ou dos seus efeitos;

II - dos efeitos dos fatos efetivamente ocorridos.

 

Dando interpretação à Medida Provisória 2158-35/2001 e demais regras da importação por conta e ordem de terceiro conforme o artigo 146, III, ‘a’, da Constituição Federal, na importação por conta e ordem é o terceiro adquirente o importador-contribuinte, por ser o sujeito que mantém relação pessoal e direta com o fato gerador (art. 121, I, do CTN). A trading, por sua vez, atua como mera prestadora de serviços aduaneiros a mando do adquirente, podendo, no máximo, ser considerada responsável solidária (art. 121, II, do CTN), em razão do interesse comum na operação (art. 124 do CTN).

Se o arcabouço legal até o momento estava em descompasso com a Constituição e o Código Tributário Nacional, devemos reconhecer que a partir de 1º de janeiro de 2026 a importação por conta e ordem de terceiro passará a estar em conformidade com o comando constitucional, graças às mudanças introduzidas pela Lei Complementar 214/2025.

 

- A ADEQUAÇÃO DO DIREITO POSITIVO À REALIDADE MATERIAL E A CRIAÇÃO DA “IMPORTAÇÃO PRÓPRIA DO ADQUIRENTE”

A reforma tributária introduzida no sistema de direito positivo pela Lei Complementar 214/2025 já é reconhecida como uma das grandes obras de nossa democracia, representando a maior reforma a nível federativo em tempos democráticos da história da Nação.

O texto possui grande zelo técnico, o que também alcança a importação por conta e ordem de terceiro.

Ao tratar da importação, o texto da Lei Complementar não se omitiu em enfrentar a realidade material da operação objeto deste artigo. É reconhecido expressamente que, na importação por conta e ordem de terceiro, é o adquirente o importador-contribuinte, pois é ele quem promove a entrada de bens de procedência estrangeira no território nacional:

Art. 72. É contribuinte do IBS e da CBS na importação de bens materiais:

I - o importador, assim considerado qualquer pessoa ou entidade sem personalidade jurídica que promova a entrada de bens materiais de procedência estrangeira no território nacional; e

II - o adquirente de mercadoria entrepostada.

Parágrafo único. Na importação por conta e ordem de terceiro, quem promove a entrada de bens materiais de procedência estrangeira no território nacional é o adquirente dos bens no exterior. (grifo nosso).

 

O comando supra entrará em vigor a partir de 1º de janeiro de 2026, a teor do artigo 544, VI, da Lei Complementar 214/2025, momento em que poderemos reconhecer a transmutação da “importação por conta e ordem de terceiro” em “importação própria do adquirente”:

Art. 544. Esta Lei Complementar entra em vigor na data de sua publicação, produzindo efeitos:     

I - a partir do primeiro dia do quarto mês subsequente ao da sua publicação, em relação aos arts. 537 a 540;

II - a partir de 1º de janeiro de 2025, em relação aos arts. 35, 58, caput, 60, § 3º, 62, 266, 317, 403, 480 a 484, 516 e 541;

III - a partir de 1º de janeiro de 2027, em relação aos arts. 450, exceto os §§ 1º e 5º, 461, 467, 499, 500, 502, 504 a 507, 509 a 515, 517, 519 a 534 e 542;

IV - a partir de 1º de janeiro de 2029, em relação aos arts. 446, 447, 449, 450, §§ 1º e 5º, 464, 465 e 474;

V - a partir de 1º de janeiro de 2033, em relação aos arts. 518 e 543; e

VI - a partir de 1º de janeiro de 2026, em relação aos demais dispositivos. (grifo nosso).

 

A vigência da nova regra certamente imporá a reformulação da Portaria COANA nº 6 de 25 de janeiro de 2019 e da Instrução Normativa RFB nº 1861, de 27 de dezembro de 2018, sobretudo para que o adquirente passe a figurar como consignatário e, consequentemente, faça jus aos créditos financeiros derivados das despesas aduaneiras.

 

- CONCLUSÃO: A IMPORTAÇÃO PRÓPRIA DO ADQUIRENTE É UMA REALIDADE À LUZ DO CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL E DA LEI COMPLEMENTAR 214/2025

Não há dúvida de que a Lei Complementar 214/2025 introduz no direito positivo regra expressa em relação à importação por conta e ordem de terceiro, reconhecendo o adquirente como contribuinte na operação. Contudo, mesmo antes de 1º de janeiro de 2026, a interpretação conforme ao artigo 146, III, ‘a’, da Constituição Federal exige reconhecer que o Código Tributário Nacional impõe sobre o arcabouço legal da importação conta e ordem tratar o adquirente como o contribuinte na importação.

Hoje a jurisprudência pátria e a própria Receita Federal reconhecem o adquirente como “importador de fato” na importação por conta e ordem. Examinando detalhadamente a Lei Complementar Nacional, fácil concluir que, em verdade, o adquirente é importador de fato e de direito, ou seja, o contribuinte.

Por isso defendemos que o parágrafo único do artigo 72 da Lei Complementar 214/2025 se aplica para além do IBS-CBS. Mais do que isso, ele meramente anuncia a relação material da importação por conta e ordem de terceiro, o que impõe, à luz do artigo 121, parágrafo único, inciso I, do Código Tributário Nacional, reconhecer que o adquirente é o contribuinte de todos os tributos incidentes na importação, sendo tal operação verdadeira “importação própria do adquirente”.

Já a trading importadora só é contribuinte dos tributos próprios do serviço prestado. Quanto ao Imposto de Importação e aos outros tributos internos incidentes sobre a importação, respeitando-se o comando constitucional do artigo 146, III, ‘a’, da Carta Magna, a posição da trading poderá ser, no máximo, de responsável solidária. Nunca de contribuinte.

Nota-se, portanto, que a Lei Complementar 214/2025 não inaugura regra nova, mas ajuda a compreender adequadamente a operação de importação por conta e ordem de terceiro, colocando-a em conformidade com o artigo 146, III, ‘a’, da Constituição Federal e com o Código Tributário Nacional.



[1] BRASIL. Congresso Nacional. Diário do Congresso Nacional, 9 out. 2001. p. 20650. (Exposição de Motivos).

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