A frase atribuída ao ex-ministro da Fazenda Pedro Malan de
que “no Brasil até o passado é imprevisível” poderia muito bem sintetizar o
entendimento jurisprudencial sobre o conceito de “serviços de qualquer
natureza” previsto no art. 156, III, da CF.
O imposto sobre serviços de qualquer natureza, conhecido por
ISS ou ISSQN, é tributo de competência Municipal e, como sugere o nome, incide
sobre a prestação de serviços.
O referido imposto não nasceu com a Constituição Federal de
1988. Sua existência remonta à reforma tributária promovida pela Emenda
Constitucional n. 18/1965, que promoveu a repartição dos impostos sobre bens e
serviços entre União (IPI), Estados (ICM) e Municípios (ISS).
A divisão da competência tributária sobre bens e serviços, ratificada pela CF/1988, resultou na guerra fiscal existente hoje, além da
proliferação de regras esparsas e sobrepostas entre todos os entes da federação,
acarretando em litigiosidade das questões tributárias em especial no âmbito
constitucional.
Em relação à atividade prestação de serviço, tal situação
foi agravada pela Carta de 1988, ao incorporar na competência tributária
estadual a tributação de terminados serviços (transporte interestadual e
intermunicipal e comunicação) e na competência federal os serviços de crédito
(IOF).
Para delimitar o debate a um exemplo prático e recente,
temos as “operações de locação de bens móveis”.
No exame da questão a jurisprudência do STF concluiu que a
locação de bens móveis não está sujeita ao ISS, uma vez que o imposto municipal
alcançaria apenas “obrigações de fazer” e não “obrigações de dar ou de
entregar”. Esse entendimento resultou na Súmula Vinculante 31, emitida pelo STF
no ano de 2010, com o seguinte verbete: É inconstitucional a incidência do
imposto sobre serviços de qualquer natureza - ISS sobre operações de locação de
bens móveis.
Ainda no ano de 2010 o Supremo examinou em repercussão geral
a incidência do ISS sobre locação de filmes. Na oportunidade a Corte Suprema
ratificou sua jurisprudência, aplicando a Súmula Vinculante 31, uma vez que a
locação de filmes deriva de obrigação de dar coisa móvel.
No entanto, no ano de 2016 o Plenário do STF surpreendeu ao
decidir em repercussão geral sobre a incidência do ISS em atividade de
operadoras de planos de saúde (RE 651703).
Diferente do entendimento adotado pela doutrina e esculpido
na Súmula Vinculante 31, o STF passou a entender que a distinção entre “obrigação
de dar/entregar” e “obrigação de fazer” para definição de “serviços de qualquer
natureza” não atende aos preceitos constitucionais.
Para o relator Min. Luiz Fux, “A classificação das
obrigações em “obrigação de dar”, de “fazer” e “não fazer”, tem cunho
eminentemente civilista, como se observa das disposições no Título “Das
Modalidades das Obrigações”, no Código Civil de 2002 (que seguiu a
classificação do Código Civil de 1916), em: (i) obrigação de dar (coisa certa
ou incerta) (arts. 233 a 246, CC); (ii) obrigação de fazer (arts. 247 a 249,
CC); e (iii) obrigação de não fazer (arts. 250 e 251, CC), não é a mais
apropriada para o enquadramento dos produtos e serviços resultantes da
atividade econômica, pelo que deve ser apreciada cum grano salis
[atentamente]”.
O Ministro sustenta que o conceito constitucional de “serviços
de qualquer natureza” é mais amplo do que o conceito civilista, de modo que a
restrição conceitual aplicada até então se mostra inadequada: “O artigo 156,
III, da CRFB/88, ao referir-se a serviços de qualquer natureza não os
adstringiu às típicas obrigações de fazer, já que raciocínio adverso
conduziria à afirmação de que haveria serviço apenas nas prestações de fazer,
nos termos do que define o Direito Privado, o que contrasta com a maior
amplitude semântica do termo adotado pela constituição, a qual inevitavelmente leva
à ampliação da competência tributária na incidência do ISSQN”.
Portanto, a partir de 2016 o STF firmou novo conceito para “serviços
de qualquer natureza”, ampliando a competência tributária dos municípios, a
saber: “Sob este ângulo, o conceito de prestação de serviços não tem
por premissa a configuração dada pelo Direito Civil, mas relacionado ao
oferecimento de uma utilidade para outrem, a partir de um conjunto de
atividades materiais ou imateriais, prestadas com habitualidade e intuito de
lucro, podendo estar conjugada ou não com a entrega de bens ao tomador”.
Logo, após 06 anos da edição da Súmula Vinculante 31 o
Supremo Tribunal Federal reformou sua jurisprudência, passando a ampliar o
conceito de “serviços” sujeitos à incidência do ISS.
Não por outra razão, 03 meses após o julgamento da questão
pelo STF foi sancionada a Lei Complementar 157/2016, que ampliou a lista de
serviços sujeitos à incidência do ISS, incluindo streaming de música e vídeo, a
exemplo do Netflix e Spotify.
Pelo exposto, com a ampliação do conceito de serviços de
qualquer natureza pelo STF em 2016, todas as relações “com oferecimento de uma
utilidade para outrem” prestadas com habitualidade e no intuito de lucro estão
sujeitas ao ISS, bastando ao legislador incluir tais serviços em Lei
Complementar.
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