Natureza jurídica da Demurrage: sobreestadia de contêineres


O transporte marítimo no século XIX era o único meio de transporte internacional de pessoas e mercadorias. Com as transformações econômicas enfrentadas pelo nascente Brasil Imperial, o hoje parcialmente revogado Código Comercial tratava de forma ampla o Direito Marítimo e as relações derivadas do contrato de transporte marítimo.

No século XX o transporte marítimo internacional sofreu profundas mudanças, tanto no viés operacional e administrativo como tecnológico, aproximando-se cientificamente do direito internacional privado em detrimento ao direito comercial interno. Nosso ordenamento jurídico-legal não acompanhou tais mudanças, em razão do sistema econômico nacional nesse período.

Hoje o comércio internacional nacional está em expansão. Porém, encontramos inúmeras legislações sobre o Direito Marítimo ‘congeladas’ no tempo. O Código Civil de 2002 revogou parcialmente do Código Comercial, com o intuito de acompanhar a moderna doutrina sobre a antiga ‘teoria dos atos de comércio’, porém, tal ato acabou gerando o maior problema enfrentado pelo judiciário em matéria de sobreestadia de contêineres.

O art. 449 do Código Comercial, ora revogado, tratava da prescrição ânua em matéria de responsabilidade no direito comercial. No item 3 do referido artigo figurava: As ações de frete e primagem, estadias e sobreestadias, e as de avaria simples, a contar do dia da entrega da carga.
A partir da revogação do referido artigo começou um debate jurisprudencial sobre a prescrição aplicável hoje à sobreestadia de contêineres.

A matéria não está pacificada, razão pela qual são inúmeras e contraditórias as decisões. Há uma parte que entende ser decenal a prescrição, em razão do art. 205 do CC. Outra tese que se mostra crescente é a aplicação trienal do V, §3º, do art. 206 do CC. Apesar da simpatia de vários tribunais pela prescrição trienal, entendo não ser a mais correta, pois a demurrage é típica responsabilidade contratual, sendo a reparação civil típica de atos ilícitos, ou seja, responsabilidade extracontratual.

O que grande parte da jurisprudência ignora são as normas análogas em matéria de transporte. Da análise dessas normas, vê-se a tendência à prescrição ânua em detrimento de qualquer outra modalidade. São exemplos: art. 9º do Decreto n. 2.681/1912, sobre transporte ferroviário, art. 8º do Decreto-Lei n. 116/1967, sobre transportes por via d’água, art. 22 da Lei n. 9.611/98, sobre transporte multimodal e art. 18 da Lei n. 11.442/2007, sobre transporte terrestre. A única exceção é o transporte aéreo, art. 317 do Código Brasileiro de Aeronáutica e art. 35, 1 da Convenção para a Unificação de Certas Regras Relativas ao Transporte Aéreo Internacional, que optam pela prescrição bienal.

O núcleo da discussão está na indefinição da natureza jurídica da demurrage.

A sobreestadia então prevista no Código Comercial tratava da demurrage de navios. A utilização de contêineres é relativamente recente.

O ordenamento nacional diz que o contêiner é parte integrante do navio. Contudo, há inúmeras formas de utilização do contêiner no transporte marítimo, sendo que quase sempre o proprietário do navio não é o mesmo proprietário do contêiner. Grande parte do transporte marítimo internacional é realizada pelo agente de cargas denominado NVOCC, sigla em inglês para Non Vessel Operating Commom Carrier, em português ‘transportador comum não proprietário de navio’.

Entendemos que, independente de ser ou não parte integrante do navio, o contêiner é parte integrante do contrato de transporte. As indenizações contratuais, como a sobreestadia, devem ser encaradas pelas normas de responsabilidade do contrato de transporte. Diante de lacuna legal, deve-se buscar nas normas análogas a integração jurídica.

A jurisprudência frequentemente classifica a demurrage como comodato, ou, muitas vezes, aluguel do contêiner. Tal entendimento, a nosso ver, é equivocado, pois o consignatário não dispõe dos requisitos básicos que configuram tais institutos, quais sejam, o uso e o gozo do contêiner. Não pode o consignatário fazer uso do contêiner para realização de frete dentro do período pactuado para desova, por exemplo.


A demurrage figura como obrigação acessória do contrato de transporte, pois sem este não haveria sobreestadia. Assim, a análise jurídica decorre do direito de transporte e do contrato de transporte.

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