Retroatividade da lei benéfica no âmbito administrativo






O direito positivo brasileiro acolhe o postulado jurídico do “tempus regit actum”, em que a norma possui efeito imediato com sua entrada em vigor, a teor do art. 6º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei 4.657/1942):

Art. 6º A Lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada.

Ocorre que essa regra não é absoluta. A Constituição Federal de 1988 mitiga esse comando ao implementar o princípio da retroatividade da lei sancionatória benéfica. É do comando esculpido no artigo 5º, XL, da CF:

Art. 5º, XL - a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu;

No âmbito infraconstitucional, o art. 106, II, do Código Tributário Brasileiro admite a aplicação da lei a ato ou fato pretérito para beneficiar o contribuinte e, dessa forma, sempre que a legislação tributária minorar ou extinguir a penalidade para uma determinada conduta terá efeitos retroativos, atingindo todos os atos não definitivamente julgados:

Art. 106. A lei aplica-se a ato ou fato pretérito:
II - tratando-se de ato não definitivamente julgado:
a) quando deixe de defini-lo como infração;
b) quando deixe de tratá-lo como contrário a qualquer exigência de ação ou omissão, desde que não tenha sido fraudulento e não tenha implicado em falta de pagamento de tributo;
c) quando lhe comine penalidade menos severa que a prevista na lei vigente ao tempo da sua prática.

A doutrina especializada aponta que essa aplicação não se limita à obrigação de pagar tributo, englobando inclusive as obrigações de caráter sancionatório, a exemplo das multas. Ensina Carrazza sobre a aplicação da lex mitior à multa:

“O princípio da benignidade, portanto, é expressamente aplicável às multas fiscais, e tal aplicabilidade, como é óbvio, não exige confirmação expressa por parte da lex mitior, já que veiculado em norma constitucional e, como se isto não bastasse, transformando em norma geral em matéria de legislação tributária. Podemos dizer, pois, que é atributo do sistema e imperativo dos valores jurídicos por ele acolhidos[1].

Logo, vemos que a retroatividade in bonam partem configura verdadeiro princípio geral do direito, de modo que a retroatividade da lei mais benéfica há de ser aplicada em todo o ordenamento jurídico. Esse é o posicionamento ventilado por diversos Tribunais Regionais Federais:

ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. EXIGÊNCIA DE KITS DE PRIMEIRO SOCORRO. RESOLUÇÃO CONTRAN 42/98. ART. 12 DA LEI 9.503/97. REVOGAÇÃO PELA LEI 9.72/98. EFEITOS PUNITIVOS. LEI MAIS BENÉFICA. - Com o advento da Lei 9.792/99 foi revogado o art. 112 da Lei 9.503/97, que dava suporte à Resolução 42/98 do CONTRAN, portanto às multas por não portar os estojos de primeiro socorro. Dessa forma, deixou de existir os efeitos punitivos inerentes à norma revogada, até mesmo porque "totalmente destituída de adequação ao fim almejado, razão porque nula ex radice e dela não se pode extrair efeitos jurídicos", conforme bem assinalado na sentença. - "2. "A retroatividade in bonam partem é princípio geral de direito que impera independentemente de haver ou não a multa índole tributária. O simples fato de o direito ao tratamento mais benéfico estar positivado apenas no CTN não afasta a incidência da lei posterior in mellius, uma vez que há absoluta identidade de pressupostos fáticos. (...)" (TRF4, AG 2007.04.00.021914-4, Terceira Turma, Relator Roger Raupp Rios, D.E. 24/07/2007). (AC 200881000113950 - Relator(a) Desembargador Federal Rogério Fialho Moreira - TRF5 - Primeira Turma - DJE - Data :22/07/2010 - Página 378.) - Apelação e remessa oficial improvidas. (AC 200130000005852, JUIZ FEDERAL GRIGÓRIO CARLOS DOS SANTOS, TRF1 - 4ª TURMA SUPLEMENTAR, e-DJF1 DATA:22/03/2012 PAGINA:288.) – grifos novos.

ADMINISTRATIVO. INFRAÇÃO DE TRÂNSITO. RESOLUÇÃO CONTRAN Nº 202/06. LEI 11.334/06 QUE DEU NOVA REDAÇÃO AO ART. 218 DA LEI Nº 9.503/97. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO GERAL DE DIREITO DE RETROATIVIDADE DA LEI MAIS BENÉFICA. 1. Trata-se de apelação da sentença que denegou a segurança por não vislumbrar o direito líquido e certo alegado pelo impetrante, ao argumento de incidência da regra geral da irretroatividade da norma posterior (Lei 11.334/06), que deverá respeitar o ato jurídico da imposição da multa de trânsito, perfeito sob a égide da lei anterior (Lei 9.503/97). 2. À época dos fatos (31.05.2006) a Lei 11.334/06, que deu nova redação ao art. 218 da Lei no 9.503/97 (Código de Trânsito), ainda não existia. Porém quando do lançamento ocorrido em 10.08.2006 já se encontrava em vigor a referida Lei 11.334/2006. 3. O CONTRAN expediu a Resolução de nº 202 de 25.08.2006 no sentido de que as alterações do art. 218 do Código de Trânsito se aplicam, apenas, aos Autos de Infrações lavrados a partir de 26.07.2006. 4. Como todo e qualquer princípio, o da irretroatividade da lei, previsto tanto no art. 5º, XXXVI da CF/88, quanto no art. 6º da LICC não tem caráter absoluto. 5. A própria CF/88, expressa em seu art. 5º, XL a retroatividade da lei benigna. 6. A legislação infraconstitucional igualmente prevê a possibilidade de retroação para beneficiar. É o caso do art. 106 do CTN que elenca as possibilidade de aplicação da lei ao fato pretérito. 7. A despeito da Resolução do CONTRAN, a necessária ponderação sobre a aplicação dos princípios em comento, infere-se que o melhor direito está na aplicação retroativa da lei mais benéfica, privilegiando-se, assim, o princípio geral de direito de retroatividade da lei mais benéfica. 8. Reforma da sentença para conceder a segurança no sentido de determinar a aplicação retroativa da Lei 11.334/06, às Notificações de Atuação de nºs 6142278 e 6142279 aplicadas ao impetrante. 9. Apelação provida. (AC 200881000113950, Desembargador Federal Rogério Fialho Moreira, TRF5 - Primeira Turma, DJE - Data::22/07/2010 - Página::378.) – grifos ausentes no original.

O Superior Tribunal de Justiça, Corte à qual compete, constitucionalmente, a última palavra na interpretação da Lei Federal, já enfrentou a matéria, fixando ser aplicável às multas administrativas a retroatividade da lei mais benéfica:

ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. PODER DE POLÍCIA. SUNAB. MULTA ADMINISTRATIVA. RETROATIVIDADE DA LEI MAIS BENÉFICA. POSSIBILIDADE. ART. 5º, XL, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. PRINCÍPIO DO DIREITO SANCIONATÓRIO. AFASTADA A APLICAÇÃO DA MULTA DO ART. 538, PARÁGRAFO ÚNICO, DO CPC.
I. O art. 5º, XL, da Constituição da República prevê a possibilidade de retroatividade da lei penal, sendo cabível extrair-se do dispositivo constitucional princípio implícito do Direito Sancionatório, segundo o qual a lei mais benéfica retroage. Precedente.
II. Afastado o fundamento da aplicação analógica do art. 106 do Código Tributário Nacional, bem como a multa aplicada com base no art. 538, parágrafo único, do Código de Processo Civil.
III. Recurso especial parcialmente provido. (STJ. REsp 1.153.083/MT. Rel. p/ acórdão Min. Regina Helena Costa. PRIMEIRA TURMA. DJe. 06.11.2014)

Há de se destacar o brilhante voto da Min. Regina Helena Costa:

Em meu entender, a retroação da lei mais benéfica é um princípio geral do Direito Sancionatório, e não apenas do Direito Penal.
 Quando uma lei é alterada, significa que o Direito está aperfeiçoando-se, evoluindo, em busca de soluções mais próximas do pensamento e anseios da sociedade. Desse modo, se a lei superveniente deixa de considerar como infração um fato anteriormente assim considerado, ou minimiza uma sanção aplicada a uma conduta infracional já prevista, entendo que tal norma deva retroagir para beneficiar o infrator.
 Constato, portanto, ser possível extrair do art. 5º, XL, da Constituição da República princípio implícito do Direito Sancionatório, qual seja: a lei mais benéfica retroage. Isso porque, se até no caso de sanção penal, que é a mais grave das punições, a Lei Maior determina a retroação da lei mais benéfica, com razão é cabível a retroatividade da lei no caso de sanções menos graves, como a administrativa.

O ensinamento da Ministra e doutrinadora Regina Helena não merece o menor reparo. Como bem destacado em seu voto, se em relação a uma punição mais grave há aplicação retroativa da norma benéfica, irrazoável é o afastamento da norma benéfica a sanções menos graves.




[1] CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 22 ed., p. 345.

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