Audiência Pública para o Exercício da Gestão Democrática da Cidade: A controvérsia do aumento do IPTU em Florianópolis



Maurício Pereira Cabral

   A tramitação de um projeto de lei não pode ser visto como mero procedimento administrativo, ou seja, não é mera sequência ordenada de atos visando a um fim, mas verdadeiro procedimento em contraditório.
   Nesse contexto, o Estatuto da Cidade, Lei n. 10.257/2001, apresenta como diretriz para o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana a participação da população e das associações representativas na execução e acompanhamento dos projetos de desenvolvimento urbano, o qual se dá por meio de debates, audiências e consultas públicas:

Estatuto da Cidade, Art. 2° A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais:
(...)
II – gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano;

  Tal exigência reflete o princípio republicano esculpido no parágrafo único do artigo 1° da Constituição Federal, o qual determina de forma clara que todo poder emana do povo.
  Nesse aspecto, a Lei Orgânica do Município de Florianópolis dispõe em seu artigo 2°, parágrafo único, II, que a soberania popular é exercida pela participação popular nas decisões do Município:

Art. 2º - O poder emana do povo, que o exerce pelos seus representantes eleitos, ou diretamente, nos termos desta Lei e toda legislação própria.
Parágrafo Único - A soberania popular se manifesta quando a todos são asseguradas condições dignas de existência, e será exercida:
I - pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto;
II - pelo plebiscito e referendo;
III - pela iniciativa popular no processo legislativo;
IV - pela participação popular nas decisões do Município e no aperfeiçoamento democrático de suas instâncias na forma de Lei;
V - pela ação fiscalizadora sobre a administração pública.

  Assim, o princípio republicano aliado ao princípio processual do contraditório impõe aos projetos legislativos a realização de debates, audiências e consultas públicas como instrumento de garantia da gestão democrática da cidade, exigência traduzida no artigo 43 do Estatuto da Cidade:

Estatuto da Cidade, Art. 43. Para garantir a gestão democrática da cidade, deverão ser utilizados, entre outros, os seguintes instrumentos:
I – órgãos colegiados de política urbana, nos níveis nacional, estadual e municipal;
II – debates, audiências e consultas públicas;
III – conferências sobre assuntos de interesse urbano, nos níveis nacional, estadual e municipal;
IV – iniciativa popular de projeto de lei e de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano;
V – (VETADO)

  São os debates, audiências e consultas públicas que concretizam os princípios constitucionais da prestação de informações de interesse geral previstos tanto no artigo 5°, XXXIII, como no artigo 37 da Constituição Federal.
  Desse modo, sempre que direitos coletivos estiverem em jogo, haverá espaço para realização de audiência pública.
  De outro modo não se pode operar. É lição de Carvalho Filho:

Se um plano urbanístico resulta apenas de pareceres técnicos elaborados em gabinetes de autoridades administrativas, as ações que dele provierem não representarão, com certeza, os anseios das comunidades. Como o alvo da política urbana é o bem-estar da população, deve esta participar, em co-gestão, para as ações e estratégias adequadas1.

  A Câmara Municipal de Florianópolis realizou a votação e aprovação do Projeto de Lei Complementar n. 1.296/2013, que atualiza a Planta Genérica de Valores - PGV, a qual deu origem à Lei Complementar Municipal n. 480/2013, sem qualquer participação da sociedade civil.
  O referido projeto de revisão da Planta Genérica de Valores – PGV foi recebido pela Câmara Municipal em 04.11.2013 e aprovado em 13.12.2013. A celeridade da tramitação foi realizada à custa da participação democrática da cidade.
  Há de se observar que gestão não se confunde com gerenciamento. Ao definir ‘gestão democrática’ o legislador impõe grande amplitude na participação ativa popular. Como observa Dallari Bucci: a gestão democrática das cidades implica a participação dos seus cidadãos e habitantes nas funções de direção, planejamento, controle e avaliação das políticas urbanas2.
  Oportuno apresentar que o Município de Florianópolis possui norma que cria a Comissão de Revisão da Planta Genérica de Valores Imobiliários. Prevista pela Lei Municipal n. 6.071/2002, a referida norma exige do cidadão comum que busca pela via administrativa a revisão dos valores da PGV a apreciação do pedido por Comissão formada pelas entidades: I - Conselho Regional dos Corretores de Imóveis - CRECI; II - Sindicato da Indústria da Construção Civil - SINDUSCON; III - Instituto Catarinense de Avaliação e Perícia de Engenhara de Santa Catarina - ICAPE/SC; IV - Escola Técnica Federal de Santa Catarina - ETEFESC; V - Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC; VI - Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura - CREA; VII - Instituto de Planejamento urbano de Florianópolis - IPUF; VIII - Secretaria Municipal de Finanças; IX- Secretaria de Urbanismo e Serviços Públicos - SUSP; X - Secretaria do Patrimônio da União - SPU; XI- Secretaria de Estado da Fazenda; XII - Sindicato das Empresas de Compra, Venda, Locação e Administração de Imóveis em Florianópolis – SECOVI.
  Percebe-se, no entanto, que nenhum dos entes acima citados foi chamado pela Câmara Municipal para apresentar parecer sobre o tema, ou, o que é mais grave, o “estudo realizado para apurar a atual PGV”, como destacado em Mensagem n. 77/2013 do Prefeito Municipal de Florianópolis, foi realizado sem a participação de qualquer dos entes enumerados no artigo 2° da Lei Municipal n. 6.071/2002.
  Assim, patente a ilegalidade na tramitação e aprovação da Lei Complementar n. n. 1.296/2013, vício que implica em sua inconstitucionalidade e ilegalidade, por limitar o debate sobre matéria que alcança direitos coletivos.

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1CARVALHO FILHO, José dos Santos. Comentários ao Estatuto da Cidade. 3ª ed. p. 37.
2BUCCI, Maria Paula Dallari. Gestão Democrática da Cidade. In. Estatuto da Cidade (comentários à Lei Federal 10.257/2001). 2003. p. 323.

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