SILVA, Rafael Peteffi da - Responsabilidade Civil pela Perda de uma Chance




1. INTRODUÇÃO

Assim como a força obrigatória dos contratos estava firmemente fundada no respeito à palavra empenhada, a responsabilidade civil, baseada nos códigos liberais, também estava intimamente relacionada com a questão moral. Esse caráter moralmente repreensível que deveria ser observado na conduta do responsável pelo dano passava obrigatoriamente pela noção de culpa.
Todas essas características do sistema liberal e individualista da responsabilidade civil foram fortemente relativizadas, tendo como consequência o aparecimento da responsabilidade civil objetiva.
Ficou evidente que o estudioso da responsabilidade civil deveria afastar-se da capacidade de previdência e da diligência do causador do dano, fatores que constituem a análise da culpa, para ajustar seu foco na análise objetiva da reparação da vítima.
Como afirma Aguiar Dias, “o sistema da culpa, nitidamente individualista, evolui para o sistema solidarista da reparação do dano”.
Os novos contornos que o instituto sob análise vem adquirindo fazem com que a própria denominação “responsabilidade civil” pareça ter ficado obsoleta. Hoje o adequado é chamar esse instituto de reparação de dano.
A dinamicidade da vida moderna fez surgir a necessidade de se repararem danos que possuem causas intangíveis e emocionais. Ademais, fatos como quebras de expectativa ou confiança, quebra de privacidade, estresse emocional, risco econômico, perda de uma chance e perda de escolha já são considerados plenamente reparáveis.
Como exemplos clássicos têm-se os casos de jogos de azar, como na hipótese do cavalo de corrida que é impedido de correr e perde a chance de ganhar um prêmio, ou os casos de perda de uma chance em matéria contenciosa, como na atitude culposa de um advogado que perde o prazo de recurso de apelação e fez com que seu cliente não tenha a chance de ver o seu direito reconhecido na instância superior.

3. ACEITAÇÃO SISTEMÁTICA E APLICAÇÃO DA NOÇÃO DE PERDA DE UMA CHANCE

3.1. Divisão fundamental entre chance e risco: um problema de certeza

O ponto nevrálgico para a diferenciação da perda de uma chance da simples criação de um risco é a perda definitiva da vantagem esperada pela vítima, ou seja, a existência do dano final. De fato, em todos os casos de perda de uma chance, a vítima encontra-se em um processo aleatório que, ao final, pode gerar uma vantagem. Entretanto, no momento em que as demandas envolvendo a perda de uma chance são apreciadas, o processo chegou ao seu final, reservando um resultado negativo para a vítima.
Nos casos de simples aumento de riscos, a vítima também se encontra em um processo aleatório que visa alcançar uma vantagem ou evitar um dano. Entretanto, a vítima ainda não sofreu o prejuízo derradeiro, tampouco perdeu a vantagem esperada de forma definitiva, mas, devido à conduta do réu, aumentaram os riscos de ocorrência de uma situação negativa. É impossível saber se em momento futuro a perda definitiva da vantagem esperada pela vítima será efetivamente observada.
Exemplo clássico dessa situação ocorre nos casos de exposição de pessoas a elementos tóxicos, quando o substancial aumento do risco de contrair uma doença pode ser cientificamente comprovado, apesar de a vítima continuar gozando de saúde perfeita. Aqui, impossível saber se a vítima efetivamente desenvolverá determinada doença, que pode restar em estado de latência durante vários anos ou nunca vir a se desenvolver. Desse modo, a vantagem esperada pela vítima, que é a manutenção da saúde perfeita, ainda pode ser alcançada. Por outro lado, nas demandas de responsabilidade pela perda de uma chance, a doença já se manifestou de forma definitiva.

3.1.1 Consequências marginais da criação de riscos
Pretende-se isolar aquilo que será denominado de “criação de riscos propriamente dita”, ou seja, a pura probabilidade do acontecimento de u dano futuro, dos outros efeitos, presentes e futuros, que tal probabilidade pode criar.

3.1.1.1 Consequências marginais atuais da criação
Apesar da criação de riscos, por parte do réu, gerar uma probabilidade de verificação de um prejuízo no futuro, é possível a identificação de alguns efeitos que já manifestaram toda a sua potencialidade danosa no momento da apreciação judicial do caso, consubstanciando-se, portanto, em danos atuais ou presentes.

3.1.2 Consequências marginais futuras da criação de risco
A criação de riscos também pode gerar alguns efeitos futuros que não se confundem com o risco propriamente dito, tampouco com o dano final que poderá ser verificado no futuro. Exemplo clássico deste fenômeno é o observado quando o aumento de riscos de desenvolver determinada enfermidade faz com que a vítima tenha de arcar com os custos dos tratamentos médicos que serão realizados, no intuito de impedir que o risco criado se transforme em efetiva enfermidade.

3.1.3 Responsabilidade pela criação de riscos propriamente dita

3.1.3.3 Proposta para a responsabilidade pela criação de riscos propriamente dita
3.1.3.3.1 Classificação das hipóteses de criação de riscos propriamente dita
A primeira categoria identificada abrange as hipóteses que guardam as mesmas características dos casos de perda de uma chance, exceto pela perda definitiva da vantagem esperada. Nesta categoria, mesmo que a perda definitiva da vantagem esperada venha a ser verificada no futuro, não se saberá ao certo quem foi o seu real causador, exatamente como ocorre nos casos de perda de uma chance.
Na segunda hipótese encontram-se as hipóteses em que a conduta do réu, ao gerar o risco de um dano futuro, aparece também como conditio sine qua non para o aparecimento deste mesmo dano futuro. Nessas hipóteses, caso o dano, cujo risco de ocorrência foi favorecido pela conduta do réu, venha a ser efetivamente observado no futuro, o réu será integralmente responsável pela indenização.

3.2 Critérios de aplicação da teoria da perda de uma chance

3.2.1 Chances sérias e reais
Para que a demanda do réu seja digna de procedência, a chance por este perdida deve representar muito mais do que uma simples esperança subjetiva.
3.2.1 Quantificação das chances perdidas
A regra fundamental a ser obedecida em casos de responsabilidade pela perda de uma chance prescreve que a reparação da chance perdida sempre deverá ser inferior ao valor da vantagem esperada e definitivamente perdida pela vítima.


4. ACEITAÇÃO DA TEORIA DA PERDA DE UMA CHANCE PELO DIREITO BRASILEIRO

4.2 Perspectiva atual da jurisprudência brasileira
O momento atual se caracteriza pela ebulição da teoria da perda de uma chance em alguns tribunais brasileiros. A sólida jurisprudência do tribunal gaúcho, Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e o Tribunal de Alçada do Paraná, entre outros, passa a conferir caráter nacional ao movimento de aceitação da teoria da perda de uma chance, considerada como instrumento útil para o deslinde das ações de reparação de danos.

4.3 O perigo representado pelo uso inadequado do parágrafo único do art. 944 do novo Código Civil
A principal função do instituto da responsabilidade civil é tentar fazer com que a vítima, mediante a indenização conferida, volte ao estado que se encontrava antes do evento danoso. Para tanto, a indenização corresponde à integralidade do dano sofrido, sendo exatamente isto que prescreve o caput do art. 944 do Código Civil: “a indenização mede-se pela extensão do dano”.
Nas hipóteses de responsabilidade civil subjetiva, o grau da culpa não deveria influir na quantificação do dano, bastando a culpa levíssima para que o réu indenizasse toda a extensão do prejuízo causado.
Foi, no entanto, para dar proteção a esse tipo de ocorrência que o legislador projetou o parágrafo único do art. 944, que dispõe: “se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá o juiz reduzir, equitativamente, a indenização”.
Importante aporte teórico foi trazido pelo Enunciado 46, extraído da Jornada de Direito Civil, realizada pelo Encontro de Estudos do Conselho da Justiça Federal, em setembro de 2002, que dispõe: art. 944. A possibilidade de redução do montante da indenização em face do grau de culpa do agente, estabelecida no parágrafo único do art. 944 do novo Código Civil, deve ser interpretada restritivamente, por representar uma exceção ao princípio da reparação integral do dano, não se aplicando às hipóteses de responsabilidade objetiva.
Entretanto, o Enunciado 380, editado nas IV Jornadas de Direito Civil, realizada em 2007 dispõe: 380. Atribui-se nova redação ao Enunciado nº 46 da I Jornada de Direito Civil, com a supressão da parte final: não se aplicando às hipóteses de responsabilidade objetiva.
Pelo estudo até agora realizado, restou demonstrado que a teoria da perda de uma chance trabalha baseada na evolução de dois requisitos essenciais: nexo causal e dano. Destarte, desde o início do trabalho ficou explícita a possibilidade de a teoria da perda de uma chance ser utilizada em hipóteses fáticas regidas pela responsabilidade civil objetiva – orientada pela teoria do risco -, assim como pela tradicional responsabilidade civil subjetiva, que tem na culpa o seu maior fundamento e requisito.

4.4 A natureza jurídica das chances perdidas e a possibilidade de aceitação sistemática da responsabilidade pela perda de uma chance no direito brasileiro
A aceitação da perda de uma chance como uma espécie de dano certo aparece como o caminho que o direito nacional segue e continuará a seguir, eis que, no ordenamento brasileiro, não se encontra qualquer dispositivo que possa tornar-se um óbice para a aplicação da teoria da perda de uma chance. Também se acredita que as propostas sobre a quantificação do dano, bem como as diferenciações em relação à modalidade de reponsabilidade pela criação de riscos, estão em total conformidade com o nosso direito positivo e poderão enriquecer o modelo jurídico nacional da teoria da perda de uma chance.
Portanto, mister realizar um aprofundado estudo sobre a possibilidade de aceitação sistemática dessas espécies de responsabilidade pela perda de uma chance, aproveitando os intensos debates travados em outros países, sobre os possíveis benefícios e malefícios que a ampliação da teoria acarretaria.


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