FICHAMENTO: Elementos para uma teoria unitária da responsabilidade civil - BECKER, Anelise



1. INTRODUÇÃO

Embora tenham sempre sido tratadas como separadas e divergentes tanto pelos legisladores como pelos intérpretes, é interessante observar que há um verdadeiro paralelismo no desenvolvimento das figuras do contrato e do delito e, por conseguinte, da responsabilidade contratual e da extracontratual. Conclui-se que o dogma da vontade no contrato e o primado da culpa no delito são espécies de um único gênero: o elemento subjetivo na fonte das obrigações.
E a concepção clássica deste elemento subjetivo hoje encontra tantas dificuldades para adaptar-se à complexidade da vida social que não tem como não deixar de ser flexibilizada. No âmbito contratual, a vontade experimentou sua primeira relativização com a teoria da declaração; hoje questiona-se, em certos casos, o próprio princípio da relatividade dos efeitos dos contratos; ao par de cominarem-se a ambas as partes da relação deveres anexos, para além daqueles expressamente previstos no contrato, por força da incidência do princípio da boa-fé objetiva sobre o vínculo obrigacional.
A crise do papel da vontade, efeito da despersonalização e objetivação do processo produtivo, modificou o conteúdo e a extensão da autonomia privada, que se encaminha cada vez mais em direção a uma dimensão objetiva, em correspondência à debilitação do papel do próprio elemento subjetivo, também objetivado,"' na medida em que também as hipóteses de responsabilidade com culpa recebem já um conceito de culpa sempre mais despersonalizado e objetivo" (tendência à avaliação da culpa mediante standards objetivos).
Hoje, a doutrina moderna afirmar que as obrigações que resultam da infração à lei e da violação de um contrato têm sempre a mesma estrutura e são polarizadas pela mesma finalidade: a satisfação do interesse do credor, em que pese a finalidade da relação jurídica proveniente de um contrato poder variar, e frequentemente varie, conforme as determinações que resultam da vontade das partes.
Isso faz com que hoje, a busca de uma teoria unitária para a responsabilidade civil vai além da verificação das semelhanças entre ambos os tipos ao tentar identificar uma fattispecie mais geral, passível de englobar a responsabilidade contratual e a extracontratual e, assim, possibilitar uma regulamentação jurídica unitária ao instituto.
A progressiva aproximação entre a responsabilidade contratual e extracontratual resulta da consideração de que os dois tipos de responsabilidades supõem uma lesão a deveres preexistentes, cuja fonte comum poderia ser o contato social: a conclusão de que a vida em sociedade exige de todos o respeito aos direitos dos outros e de terceiros.

2. O CONTATO SOCIAL COMO A FONTE MAIS GERAL DOS DIREITOS E OBRIGAÇÕES

A noção de contato social, na Sociologia, é o pressuposto necessário para desencadear todo e qualquer processo social, embora existam contatos que, extinguindo-se rapidamente, não dão início a processo algum.
Neste sentido amplo, o conceito de contato social representa o pressuposto da vida em sociedade para a Sociologia e, ingressando com este mesmo sentido amplo no mundo jurídico, serve para relativizar a rigidez da classificação dualista das fontes das obrigações, ao apontar a própria vida em sociedade como a mais ampla e originária de todas as outras fontes.
O contato social ingressa no mundo jurídico porque, assim como pode se extinguir imediatamente, sem dar início a qualquer processo, pode originar processos sociais que, conforme a suficiência do suporte fático, podem sofrer a incidência de uma norma jurídica. Exemplificativa é a situação de um contato social no qual alguém manifesta a intenção de realizar um negócio, produzindo em outrem justa expectativa quanto à sua celebração, e, arbitrariamente, decide interromper as negociações e não mais conduzi-lo. Tal contato, dependendo das circunstâncias apuráveis no caso concreto, poderá sofrer a incidência de princípios jurídicos, tais como o da boa-fé objetiva e o da tutela da confiança, e gerar o dever de ressarcir, no mínimo, o dano resultante da violação à confiança.
Em sentido amplo, o contato social, como expressão da vida em sociedade, é, portanto, a fonte mais geral de todas as obrigações. Mas os contatos vão-se tornando mais intensos, mais próximos, na medida em que mais o ordenamento jurídico valoriza a atuação da vontade e, pelo contrário, tornam-se mais rarefeitos ou distantes quanto menor for a intervenção da vontade.
Se os deveres oriundos de um contato social mais próximo, qualificado pela vontade, têm uma natureza diversa daqueles que surgem de contatos mais distantes os deveres provenientes de atos voluntários impedem o emprego da noção de contato social como a fattispecie mais geral, passível de englobar os dois tipos de responsabilidade civil. Na hipótese contrária estará aberta a via para uma teoria unitária da responsabilidade contratual e extracontratual.


3. A SEMELHANÇA ESTRUTURAL ENTRE A RESPONSABILIDADE CONTRATUAL E A EXTRACONTRATUAL

Admitindo-se que o essencial em matéria de reparação advém do fato de que o ato do autor do dano constitui uma lesão a uma regra de conduta, determinada pela lei ou por um contrato, a distinção entre as duas espécies de responsabilidade, do ponto de vista da estrutura do fato que origina o precitado direito de reparação, merece uma consideração apenas secundária. Isto, no entanto, não quer dizer que sejam absolutamente iguais, pois não se pode negar a existência de diferenças, ainda que acessórias.
Os deveres anexos não consistem, portanto, em elementos da relação contratual existentes ab initio, em numerus clausus e com um conteúdo fixo. A sua concretização depende da verificação de pressupostos variáveis que, à luz do fim do contrato, adquirem essa eficácia. E não só o seu aparecimento: também o seu conteúdo interno, intensidade e duração dependem das circunstâncias atuais. De certo modo, pode-se dizer que existem, potencialmente, desde o início e são atualizados à medida que se vão verificando as situações que põem em perigo consecução do interesse no contrato. Sua fixação, portanto, somente é possível em um determinado momento temporal a sua existência independe da hipótese de sua violação, extinguindo-se com seu cumprimento ou com sua superação através e uma alteração das circunstâncias que determinaram o seu surgimento, o que os torna sem objeto.

4. CONCLUSÃO

As diferenças entre os ditos deveres genéricos de consideração e os deveres concretos que decorrem de certos contratos manifestam-se apenas no quadro da intensidade do contato social que se estabelece entre as partes. Há uma semelhança estrutural entre os dois tipos de responsabilidade, o que se manifesta na similitude entre os deveres que resultam do contrito e aqueles que se pode ver na responsabilidade extracontratual.
No âmbito do Direito do Consumidor, por força da necessidade de uma atuação mais eficiente de suas medidas tutelares, já se verifica a adoção da teoria unitária da responsabilidade civil, sob a roupagem da teoria da qualidade.
Então se conclui que a vontade não transforma completamente os deveres que decorrem do contato social, pelo que esta noção pode ser utilizada como a fattispécie mais geral com vistas à unificação dos dois tipos de responsabilidade civil. A diferença entre estas é meramente circunstancial, pois o contrato é apenas um tipo de contato social qualificado pela vontade.

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